Histórias de jornadas de trabalho das mulheres ponta-grossenses e os reflexos da pandemia de Covid-19

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05/12/22 por Yasmin Orlowski

Arte: Levi

Caroliny Stocco, 39 anos, é epidemiologista, acorda sempre às 07 horas, organiza suas coisas para o trabalho, e parte para o setor de Coordenação de Epidemiologia, onde atua há 14 anos. A rotina começa às 8h30 e segue até as 17h30. De volta para casa, Caroliny conta com ajuda do pai, para organização de pequenas tarefas, como lavar e secar as louças, varrer o chão e colocar o lixo para fora. João, 70 anos, enfrenta uma pneumonia grave desde 2018, o que o torna dependente de cilindro de oxigênio.

Essa não era a rotina de Caroliny em 2020 e 2021, quando o mundo enfrentava picos da pandemia de Covid-19, que chegou ao Brasil em março de 2020. Em Ponta Grossa, o primeiro caso confirmado foi em 21 de março de 2020, já a primeira morte em 9 de junho de 2020. Quando a Covid-19 passou a fazer as primeiras vítimas, Caroliny só parava mesmo por volta das 22h. Isso quando não recebia mensagens e ligações durante a madrugada. Durante tanto trabalho, em momentos que precisava arrumar a casa, na rotina do dia a dia, raras vezes contava com a ajuda do pai, que já debilitado, também contraiu o novo coronavírus em 2021.

“Depois que ele teve Covid-19 e voltou para casa, falei com a minha mãe e irmãs [ambas moram em Lages – Santa Catarina]: ‘Com a rotina que estou de trabalho, não sei se vou dar conta nesse momento”, disse Caroliny.

Durante a pandemia de Covid-19, o home office se tornou regra como modalidade no mundo do trabalho. O teletrabalho consiste na pessoa executar as tarefas do trabalho em casa. O que requer adaptar o ambiente domiciliar em local de trabalho, uma tendência mundial que tem se expandido. Estudo da Fundação Instituto de Administração (FIA) indica que o teletrabalho foi adotado por 46% das empresas durante a pandemia. Relatório do IPEA (2021) mostra o home office composto principalmente por mulheres (58,3%) pessoas brancas (60%) e nível superior completo (62,6%), o que distancia da realidade de grande parte dos brasileiros. Dentre os 83 milhões de pessoas empregadas em 2020, 74 milhões (88,9%) continuaram trabalhando normalmente, como a realidade de Caroliny.

A epidemiologista somente aderiu ao teletrabalho por 10 dias, durante o período em que o pai contraiu a Covid-19. Para Caroliny, mesmo que pudesse, não teria como deixar de trabalhar naquele momento, com a alta demanda de trabalho e a equipe enxuta. Como profissional da linha de frente, Caroliny não pôde se aderir ao home office na pandemia. Quando vivenciou a experiência, para respeitar a quarentena do pai, sentiu sua rotina profissional muito mais exaustiva, parecia trabalho redobrado.

“Como eu estava em casa, era ‘tô’ colocando a roupa no varal, daqui a pouco volto a trabalhar e assim ia. O horário de almoço eu não conseguia respeitar, porque aí tinha uma demanda e eu ia resolvendo. Coisa que no trabalho a gente registra o ponto. Mas, em casa, senti que evidenciou. Os horários não eram cumpridos de fato. Então você acaba trabalhando muito mais”, ressaltou Caroliny.

Segundo pesquisa publicada pelo Hibou – empresa de monitoramento e análises de mercado –, durante a pandemia da Covid-19, a exaustão e isolamento social aumentaram para 73% das brasileiras, que precisaram ficar em home office, tendo que se dividir entre trabalho, cuidados com a casa e filhas(os), para aquelas que as(os) têm ou cuidados com demais familiares.

O pai de Caroliny se recuperou. Felizmente, não entrou para as estatísticas das mais de 692 mil de vítimas da Covid-19 no Brasil, 45.605 no Paraná, 1.608 em Ponta Grossa e 6.664.216 no mundo, conforme dados da Jonhs Hopkins de 16 de dezembro de 2022. A epidemiologista diz que precisou separar a morte no trabalho, para também não acabar doente, por ter que lidar com o luto diário. Uma das alternativas foi as sessões de Reiki, terapia oriental que ajuda no equilíbrio da mente e corpo.

Em 2022, quando a vacinação contra a Covid-19 atingiu percentual significativo da população, Caroliny sentiu-se aliviada, mesmo com a rotina apurada. A mãe que veio de Santa Catarina para ajudá-la, pôde voltar para casa e Caroliny continuou os cuidados com o pai. A epidemiologista mantém a rotina de 8 horas de trabalho por dia e se desdobra entre as tarefas domésticas e os cuidados com o pai. Com a redução dos casos de coronavírus, Caroliny tenta organizar outras atividades pessoais que estavam em atraso.

“Reduziu o número de ligação. 'Tô' conseguindo respirar um pouco mais”, disse Caroliny

Assim como Caroliny Stocco, várias mulheres também atuaram na linha de frente da pandemia, se desdobrando em múltiplas jornadas de trabalho. Maria Cristina Roque Ferreira, 51 anos, é uma delas. Formada em administração hospitalar pós gestão da área de saúde, atua como administradora do Hospital da Criança (atualmente denominado Hospital Universitário Materno Infantil) em Ponta Grossa.

Maria Cristina acorda por volta das 6 horas. Toma o café da manhã, coloca as roupas para lavar e sai para o trabalho às 8 horas. No intervalo do almoço, às 12 horas, ela sai do trabalho, compra comida para a família. A mãe de Maria Cristina mora só e vive sob cuidados. Ao deixar o almoço para mãe, ela vai para casa, para o almoço com o marido e a filha. Em seguida, retorna ao trabalho e permanece até às 17h. Novamente, a tarefa se repete: volta à casa da mãe com o jantar.

Maria Cristina em seu ambiente de trabalho.

Maria Cristina Roque Ferreira, administradora, no Hospital Universitário Materno Infantil. Foto: Yasmin Orlowski

Em 2021, a administradora perdeu o pai, que vivia com sua mãe. Os dois já idosos e com problemas de saúde eram considerados potenciais alvos do novo coronavírus. Além de cuidar da própria casa, Maria Cristina se viu obrigada a redobrar os cuidados com os pais, como fazer as compras de alimentos e manter a casa.

“Como eu era a que mais saía, então buscava coisas de mercado, de comer, para ter uma única pessoa fora de casa. Foi desafiador porque, neste período, eu também precisava cuidar dos meus pais. Eles não podiam sair, são idosos, dependiam só de mim, porque não tem mais ninguém da família aqui. Meus irmãos moram todos fora, então corria para resolver as coisas para eles e para minha casa também. Foi uma jornada bem puxada e cansativa”, afirmou Maria Cristina.

Dados do Estudo Longitudinal da Saúde do Adulto (Elsa-Brasil) apontam também que durante o período pandêmico, as mulheres realizaram, em média, quatro horas de trabalho doméstico por semana a mais do que os homens. A pesquisa do Elsa também mostra que essa múltipla jornada de trabalho da mulher fez com que elas ficassem mais vulneráveis à depressão, estresse e ansiedade.

Assim que o pai de Maria Cristina morreu, em julho de 2021, sua mãe, Joyce, de 83 anos que já enfrentava problemas neurológicos como o início de uma demência em etapa de diagnóstico de alzheimer, como conta, teve um gatilho de piora. Joyce passou a necessitar ainda mais dos cuidados da filha. Por isso, Maria Cristina considera sua rotina agora mais exaustiva em relação ao período intenso da pandemia, em 2020 e 2021.

Atualmente Maria Cristina mantém a rotina de acordar às 6 horas, preparar o café da manhã, fazer outra atividade doméstica e sair para o trabalho. No horário de almoço, mantém a rotina na casa da mãe. Já no final do expediente do trabalho, retorna novamente à casa da mãe, que durante à tarde passa sob os cuidados de uma cuidadora de idosos. “Sinto que, às vezes, na minha casa sentem minha falta. As coisas não estão no lugar como estavam todos os dias”, ressaltou. E mesmo tendo ajuda do marido, Maria Cristina sabe que sua presença na própria casa faz falta.

Com tanta correria ela diz que, além do cansaço físico, há o emocional. Maria Cristina sente não poder se dedicar mais a si mesma.Com tanta correria ela diz que, além do cansaço físico, há o emocional. Maria Cristina sente não poder se dedicar mais a si mesma.

“A gente passa a não ter mais tempo para fazer um esporte, para se cuidar. Então, óbvio, você começa a ter dor de cabeça, engordar, ter sintomas de um sedentarismo e de um cansaço físico e emocional”, destacou.

Mesmo com todas as mudanças que a pandemia de Covid-19 trouxe para o trabalho, a rotina de Maria Cristina continua pesada e cansativa. Agora, após nove meses nos cuidados de sua mãe, ela tenta dividir a tarefa com a irmã que mora em Curitiba. O que a permite descansar e se cuidar.

Outra profissional na linha de frente da pandemia de Covid-19 foi a Jéssica Sanger Martin, 33 anos. Enfermeira há 10 anos, Jéssica assumiu o cargo de gerente de enfermagem no Hospital Municipal de Ponta Grossa, um pouco antes da pandemia. A enfermeira conta que, embora o Hospital Municipal não tenha sido equipado para linha de frente na pandemia, a instituição foi reestruturada para atender os pacientes.

Jéssica em seu ambiente de trabalho

Jessica Sanger Marin, enfermeira, no Hospital Municipal. Foto: Yasmin Orlowski

“A gente teve que reestruturar tudo, desde vestiário, recepção, cozinha, como os funcionários iriam comer, quantos teriam no refeitório. A questão de ter um plano de ação em relação ao Covid. Teve muitas épocas de ter surtos em um só setor. Não era um nem dois funcionários, eram todos os funcionários que acabavam contraindo”, relatou Jéssica.

A enfermeira conta que foi a principal responsável por realizar o treinamento dos seus colegas de profissão, tarefa que requereu muito em sua rotina.

“Trabalhei como nunca, principalmente porque precisava cobrir e treinar os enfermeiros. Pronto atendimento aqui não era referência para Covid-19. Porém, as UPA’s começaram a ficar lotadas e os pacientes a precisar vir para cá. Aí o hospital começou a não comportar mais”, relatou Jéssica.

A Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), numa terça-feira, dia 16 de março de 2021, em sua divulgação do Boletim Extraordinário do Observatório Covid-19, definiu a realidade das Unidades de Tratamento Intensivo (UTI’s) como o maior colapso sanitário e hospitalar da história do Brasil. Naquele momento, dos 26 estados + Distrito Federal, 24 estados e o Distrito Federal estavam com taxas de ocupação de leitos de UTI Covid-19 iguais ou superior a 80%. No Paraná, essa taxa chegava a 96% de ocupação.

Curitiba, a capital do Paraná, em 02 de junho de 2021 apresentava colapso total, com 104% da ocupação dos leitos de UTI, conforme dados do Boletim Epidemiológico, divulgado pela Secretaria Municipal da Saúde de Curitiba. Realidade que levou a morte de milhares de pessoas, por falta de oxigênio.

A drástica mudança afetou diretamente a rotina da enfermeira, que saia para trabalhar por volta das 7 horas da manhã e retornava para casa às 19 horas, após 12 horas de trabalho. A carga horária da categoria por lei são 8 horas por dia e 40 horas semanais. O celular virou o principal recurso de trabalho de Jéssica, porém, por muitas vezes, a tecnologia foi mais um empecilho na sua rotina.

“O meu celular era 24h, madrugada, cedo, sábado, domingo, hora de almoço. Qualquer horário, tocava. Principalmente para a questão de leitos, equipamentos, que às vezes estragavam. Tinha que estar sempre em ordem, eram várias demandas”, contou a enfermeira.

Dados da 3º edição do Painel TIC Covid-19, do Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br), indicaram o celular como a principal ferramenta de estudo e trabalho na pandemia. Mas o aumento no tempo dos usuários na tela demonstrou também piora no estilo de vida durante a pandemia. O levantamento indicou que o tempo de tela subiu de 6 para 10 horas diárias (aumento de 54%) afetando diretamente no sedentarismo, ligado a uma maior exposição a telas e queda na qualidade da alimentação, com menor consumo de frutas e hortaliças.

A enfermeira conta o quanto a saúde mental foi afetada durante a pandemia de Covid-19. Sob tratamentos contra a epilepsia, Jéssica relata sua experiência com a doença nos períodos de pico da pandemia.

“Tenho epilepsia, então tenho convulsão. E um dos fatores que desencadeia a convulsão é o emocional. Tive mais convulsões do que já tive em outros anos. Engordei muito, porque vinha a ansiedade e você acaba descontando na comida, né…”, relatou. Como enfrentou a doença no período da pandemia, Jéssica descreveu: “Você realmente ficava sem chão. Você não tinha academia, não tinha a parte espiritual. Eu sou católica, não tinha como confessar. A confissão para mim como sacramento é muito importante. Digo não só para mim, mas como também para os pacientes. Se para mim foi difícil, imagina para os pacientes”.

A assistente social Maria Aparecida de Fátima Melo Teixeira, 62 anos, conhecida como ‘Cida’, também sentiu falta da atenção à espiritualidade durante a pandemia de Covid-19. A alternativa para manter sua saúde mental e emocional foi sempre se apegar à Deus. Evangélica, não deixou de frequentar as igrejas.

Cida em sua casa.

Maria Aparecida de Fátima Melo Teixeira, assistente social, em sua casa. Foto: Yasmin Orlowski

“Não paramos de ir à igreja. Fizeram escalas. Você poderia escolher o horário. Era tudo separado, com higienização. Então a gente foi à igreja normalmente, a maioria era online. Foi tudo novo, até você se acostumar com aquela novidade. A gente ia à igreja na quarta, no domingo, depois você precisa ficar em casa”.

Cida possui quatro filhos, um de 44 anos, outro de 38, uma de 30 e outra de 24. Os filhos já não são mais sua maior preocupação. Mas a mãe, que faleceu em 2022, aos 91 anos, vítima do diabetes.

Cida conta que, no início da pandemia, sua mãe não entendia a gravidade da Covid-19. Fazia perguntas sobre o porquê dos netos não poderem mais lhe dar beijos, nem abraços. Mas que ela nunca foi teimosa, sempre usou máscara e procurou se adaptar.

“Era difícil, ela perguntava se estava doente porque não chegavam perto dela. Começou a ver as notícias e entendeu. Mas no começo ela perguntava porque não davam mais benção, medo de passar alguma coisa”.

Nos cuidados com a mãe, a rotina era acordá-la, preparar o café da manhã, dar o café, a medicação e colocá-la para dormir novamente, quando finalmente Cida poderia sair para o trabalho. No retorno à casa para o almoço, a assistente social adiantava também o jantar. No fim do expediente às 17 horas, retornava novamente à casa, quando chegava por volta das 18 horas.

Assistente social há 11 anos, Cida não viu grandes mudanças na sua profissão na Secretaria de Segurança Pública, durante a pandemia de Covid-19. A atividade permaneceu no atendimento ao público por agendamento, sem aglomerações. Mas Cida recorda a situação em que, entre 10 pessoas presentes em uma reunião de trabalho, nove foram diagnosticadas com o SARS-Cov-2. Em seguida, aderiram ao home office por um mês.

Para Cida, a principal mudança foi o adoecimento da mãe, somada à dificuldade na pandemia, que impedia que as pessoas saíssem de casa. Fato que provocou certo pavor, que a persegue até os dias de hoje. Com medo de contrair o vírus, Cida mantém a higienização de compras no mercado com o álcool e não pretende parar. Só na limpeza dos produtos já despende tempo na rotina da assistente social.

Dados da Fundação Oswald Cruz (Fiocruz) indicam que metade das mulheres passaram a cuidar de alguém na pandemia. O levantamento fez parte da pesquisa realizada pela organização Mídia Gênero e Número, em parceria com a Sempreviva Organização Feminista (SOF).

“Máscara direto. Comecei a fazer máscara, passar álcool na casa, nas almofadas, nos alimentos do mercado. Ainda continuo. Virou um hábito limpar calçados, trocar de roupa... Ficou uma neurose sair na rua, ir ao mercado, cuidar da mãe idosa e de meu marido, que também é idoso”.


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