Hospitais na pandemia de Covid-19: A rotina exaustiva das profissionais da linha de frente

Mulheres ponta-grossenses da área da saúde foram o principal combate ao coronavírus

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05/12/22 por Yasmin Orlowski

Arte: Levi

Todas as profissões foram afetadas pela pandemia de Covid-19. Porém, as profissionais da linha de frente estão entre as mais impactadas. Isso porque elas trabalharam diretamente com o vírus sars-cov-2, num momento em que não existiam pesquisas suficientes sobre como combatê-lo. Enquanto outras profissionais puderam trabalhar em casa e se proteger, as profissionais da linha de frente estavam nos hospitais, tendo contato direto com pacientes Covid, com o risco constante de contraí-lo.

Segundo dados do Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (CONASEMS), as mulheres representam 65% dos mais de seis milhões de profissionais atuantes no setor público e privado de saúde, em todos os níveis de complexidade da assistência. Em áreas como o serviço social, elas ultrapassam 90% de presença e, em enfermagem, 80%. Isso significa que as mulheres são maioria no combate à pandemia de Covid-19.

“Acho que foi difícil para todo mundo. Porém, eu estava literalmente na linha de frente. Porque precisava garantir que alguém estivesse atendendo os pacientes”, conta Jessica Saringer, enfermeira do Hospital Municipal de Ponta Grossa

O relato de Jessica retrata um sentimento compartilhado por milhares de profissionais da área da saúde que, no último ano, viram sua rotina mudar completamente. Como o vírus da Covid-19 ainda era desconhecido, sem tratamento e sem vacina, os cuidados durante esse período tiveram de ser redobrados e os hospitais precisaram se adequar a outra realidade.

Jéssica em seu ambiente de trabalho.

Jessica Sanger Marin, enfermeira, no Hospital Municipal. Foto: Yasmin Orlowski

Caroliny Stocco, de 37 anos, conta que sua carga horária deveria ser de 8 horas diárias. Mas durante a pandemia acabava trabalhando até 12 horas diárias. A profissional trabalha com vários sistemas de informações, como o de agravo de notificação, da portaria do Ministério da Saúde. Com a pandemia de Covid-19, ela passou a identificar também suspeitos e confirmados da doença. As notificações passaram essencialmente à Covid-19, “deixando de lado” as outras doenças.

“Mudança de rotina ali no começo, quando começamos a ter os primeiros casos suspeitos e depois quando confirmou. Era assim, tinha horário de trabalho e horário pós-trabalho. No começo, foi bem desgastante, tinha dia em que eu ia respondendo mensagem, ligação, até 22 horas”, relembra Caroliny.

Outra profissional que viu sua rotina dentro do hospital ser alterada é Maria Cristina. Ela trabalha no Hospital Regional (agora Hospital Universitário) e no Hospital da Criança (agora MAI – Hospital Universitário Materno Infantil). Maria fala que o período pandêmico foi uma época bastante difícil, principalmente porque o Hospital Universitário foi transformado em referência de atendimento Covid-19 do Estado.

Maria Cristina em seu ambiente de trabalho.

Maria Cristina Roque Ferreira, administradora, no Hospital Universitário Materno Infantil. Foto: Yasmin Orlowski

“Durante o período todo da pandemia, nós não paramos. Pelo contrário, nós trabalhamos muito. Neste período, foi quando tivemos o Hospital lotado, tivemos de buscar soluções para trabalhar a maternidade, que era dentro do Hospital Universitário também… Foi bastante desafiador”. Maria Cristina relata ao relembrar como o período da pandemia de Covid-19 foi o mais desgastante profissionalmente.

Naquele momento, o Hospital da Criança também passou a portar a maternidade e Maria Cristina viu diversos casos com Covid-19 – gestantes, recém-nascidos, crianças –, fazendo com que o hospital precisasse se adaptar cada vez mais.

Como os profissionais da linha de frente não puderam aderir ao home office, os cuidados redobraram, pelo medo de contrair o vírus e como forma de se protegerem. Maria Cristina conta que o Hospital tomou o máximo de cuidados possíveis.

“A gente tinha um cuidado enorme, como todo mundo. Todas as medidas de profilaxia a gente tomava. Dentro do hospital, a gente procurava tomar os máximos cuidados possíveis. Graças a Deus, a gente não foi contaminado, mesmo estando dentro do foco da Covid na cidade. Em casa, todo mundo teve aquela fase: chega, tira sapato, tira roupa, coloca para lavar, troca, chega em casa e já toma banho, assim por diante.”

Já a enfermeira do Hospital Municipal, Jessica Sanger, conta que o hospital em que trabalha, diferente do caso de Maria Cristina, não foi equipado para ser de combate da linha de frente da pandemia. Mas isso não significa que também não tiveram de se adaptar.

“A gente teve que se adequar porque a pandemia foi muito grande. A gente teve que adequar todo o hospital, toda a parte de planejamento, treinamento dos funcionários foi tudo eu que fiz. Então, muda muito a rotina. A gente teve que estruturar tudo, desde vestiário, recepção, cozinha. Teve muitas épocas de ter surtos em um só setor. Não era um ou dois funcionários, eram todos os funcionários que acabaram contraindo”, relembra Jéssica ao falar sobre as principais mudanças que o Hospital teve de enfrentar na pandemia.

A enfermeira conta que a parte de treinamento dos enfermeiros também foi intensa, pois mesmo que o Hospital não fosse referência para a covid-19, as UPAS começaram a ficar lotadas e, consequentemente, os pacientes eram encaminhados para lá.

Outra profissional da linha de frente, a cuidadora de idosos Marli Teresinha Ribeiro, trabalha no Lar das Vovozinhas. Por também ser idosa, Marli foi afastada do trabalho, retornando apenas no final de 2020. A cuidadora conta que, para ela, a principal mudança na Casa de Repouso durante a pandemia foram as visitas às idosas. “Com todos esses cuidados aqui dentro, EPI’s [Equipamentos de Proteção Individual], isolamento, ninguém saia ali de dentro. As vovós ficavam sem visitas”.

Marli em seu ambiente de trabalho.

Marli Teresinha Ribeiro de Lima, cuidadora de idosos, na casa de repouso Lar das Vovozinhas. Foto: Yasmin Orlowski

A Comissão de Defesa dos Direitos da Pessoa Idosa aprovou, em 2021, o projeto de lei Lei 971/20, que disciplina as medidas de higiene adotadas para visitas a idosos acolhidos em Instituições de Longa Permanência (ILPs), como asilos e casas de repouso. O texto aprovado prevê que, durante a visitação, as ILPs devem evitar a aglomeração de pessoas, verificar a temperatura de visitantes e residentes e impedir a entrada de pessoas com sintomas de gripe.

Atualmente Maria Cristina mantém a rotina de acordar às 6 horas, preparar o café da manhã, fazer outra atividade doméstica e sair para o trabalho. No horário de almoço, mantém a rotina na casa da mãe. Já no final do expediente do trabalho, retorna novamente à casa da mãe, que durante à tarde passa sob os cuidados de uma cuidadora de idosos. “Sinto que, às vezes, na minha casa sentem minha falta. As coisas não estão no lugar como estavam todos os dias”, ressaltou. E mesmo tendo ajuda do marido, Maria Cristina sabe que sua presença na própria casa faz falta.

Somente no Brasil, o coronavírus matou 142 mil idosos (acima dos 60 anos), até 2 de janeiro de 2021, segundo dados do Ministério da Saúde.

Gráfico mortos por Covid-19 no BR.

Gráfico Mortos por Covid-19 no Brasil. Fonte: Ministério da Saúde.

Os idosos, no estágio inicial da pandemia, eram o principal foco de casos graves de Covid-19. Nove a cada 10 mortes (89,9%) pelo coronavírus no Brasil aconteceram entre pessoas com mais de 60 anos. É o que apontam dados divulgados em 26 de março de 2020, pelo Ministério da Saúde.

O fato do coronavírus atingir principalmente idosos no início da sua proliferação fez com que asilos e casas de repouso, como a que Marli trabalha, fossem locais-focos. Exemplo de caso noticiado em Londres, no Reino Unido, 24 idosos morreram na casa de repouso Bradwell Hall, durante os primeiros meses da pandemia de coronavírus. Em Ponta Grossa, segundo dados da Prefeitura, existem 22.865 idosos acima de 60 anos. O Lar das Vovozinhas é uma das 205 Instituições de Longa Permanência da cidade.

Quase metade dos funcionários e profissionais de saúde das casas de repouso sofreram síndromes de ansiedade ou transtorno de estresse pós-traumático (TEPT) devido à crise da Covid-19, de acordo com estuda publicado na Revista Royal Society Open Science, realizado no norte da Itália.

“As visitas até hoje são com restrição. Elas começaram só de longe, para fora do portão, de máscara e as vovós também de máscara”. Além disso, a cuidadora de idosos relata, por experiências de suas colegas, que houve muitos falecimentos durante os primeiros meses da pandemia.

Por trabalhar diretamente com o principal foco da pandemia de Covid-19, os cuidados de Marli também eram redobrados. “Na pandemia era um ritual. Saía daqui, entrava pelo portãozinho do lado, tomava banho no banheiro do fundo da minha casa, não entrava com a roupa”.

Já a assistente social Maria Aparecida, atendia a população por agenda, sem aglomeração. Mas nem por isso Cida deixou os cuidados de lado. “Máscara direto, comecei a fazer máscara, álcool... passando na casa, nas almofadas, nos alimentos do mercado, ainda continuo fazendo, virou um habito, calçados, trocar de roupa”.

Cida em sua casa.

Maria Aparecida de Fátima Melo Teixeira, assistente social, em sua casa. Foto: Yasmin Orlowski

Mudança na rotina profissional das mulheres da linha de frente afetou também as rotinas pessoais.

Caroliny conta como a pandemia mundial deixou sua rotina ainda mais exaustiva.

“Acordava, já saia para trabalhar. Quando voltava, tentava organizar as coisas em casa. Fim de semana também. Não tinha diarista. Depois, quando ele foi se recuperando, conseguiu ajudar com algumas coisas da rotina, levar o lixo, lavar a louça. Coisas que são pequenos detalhes mas super ajudam”, conta Caroliny se referindo ao pai.

A profissional que atuou no protocolo das vítimas de Covid-19 precisava lidar com o luto constante. O que também afetou o seu emocional.

“Lembro quando a gente tava com o pico de casos. Algumas vezes fiquei refletindo, mas por quê? Por que essas pessoas? Depois comecei a ir para outras linhas, que talvez o vírus tinha algum ensinamento, algum aprendizado para trazer para a população. Mas realmente é difícil. Quando você conversa com o familiar e vê o quanto aquilo foi ruim. Não podia ter velório. O caixão tinha que ser lacrado. A família só fazia o reconhecimento no necrotério. Depois não via mais o familiar. Então, o quanto a dor do outro também mexe com a gente por mais que não seja um familiar. Mas, ficar pensando nisso, acaba mexendo com o psicológico”, desabafa Caroliny.

A profissional Maria Cristina ressalta os cuidados que manteve durante esse período. Durante a pandemia de Covid-19, também precisava cuidar dos seus pais idosos. Além da rotina caótica do hospital, ela mal tinha tempo para parar em casa, pois os pais necessitavam dos seus cuidados. Quando parava, precisava cuidar dos afazeres domésticos.

“Minha rotina sempre foi acordar por 6h da manhã e dormir por 23h, com duas casas para cuidar dos afazeres domésticos”. Uma das suas reclamações é que mesmo a pandemia tendo passado, sua rotina continua pesada, tanto fisicamente quanto emocionalmente, e ela sente não ter tempo para cuidar de si.

“A gente passa a não ter mais tempo para fazer um esporte, começa a ter dor de cabeça... engordar, cansaço físico e emocional”.

A enfermeira Jessica, em sua rotina pessoal, viu suas crises de epilepsia piorarem, devido ao estresse enfrentado durante a pandemia e, como Maria Cristina, sente por não ter um tempo maior para cuidar de si.

Relatório divulgado pela Fundação Getúlio Vargas mostra que 80% dos trabalhadores da área da saúde sentiram impactos negativos na saúde mental causados pela pandemia, sendo que apenas 19% buscaram ajuda para lidar com o problema. Caroliny, Jéssica, Marli, Cida e Maria Cristina não procuraram ajuda psicológica ou psiquiátrica durante a pandemia.


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