O home office se popularizou durante a pandemia de Covid-19, mesmo com o modelo de trabalho já existente há certo tempo. Segundo dados do IBGE, em 2018 cerca de 3,8 milhões de brasileiros trabalhavam remotamente. Mas o termo home office não era tão popular. Foi somente neste ano (2022) que o Senado regulamentou o teletrabalho através da Medida Provisória 1.108/2022. Nos tempos em que um mundo não era dominado pela tecnologia, era inimaginável trabalhar diretamente da própria casa, de frente para o computador, com o apoio das ferramentas digitais.
Algo antes inimaginável, se tornou muito comum durante a pandemia de Covid-19. Com a necessidade de implementar a quarentena e manter o isolamento social, por recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS), as pessoas precisaram trabalhar em casa. Mas essa não foi a realidade de grande parcela da população brasileira. Segundo relatório do IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) de 2021, o home office é composto majoritariamente por pessoas brancas e altamente escolarizadas, distanciando o modelo da realidade de grande parte dos brasileiros. Dentre as 83 milhões de pessoas empregadas em 2020 no Brasil, 74 milhões (88,9%) continuaram trabalhando normalmente e 9,2 milhões (11,1%) foram afastadas. Dentre os que continuaram ativos, 8,2 milhões estavam em home office (11% da população total ocupada e não desempregada).

Brasileiros empregados em 2020. Fonte: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada.
Portanto, apenas uma parcela da população pode aderir de fato ao isolamento social e ficar em casa. Com escassez de conhecimento sobre o coronavírus, tratamentos, e inexistência (naquele momento) de vacina, o coronavírus acometia cada vez mais vítimas. As pessoas que não podiam ficar em casa ficavam expostas ao constante risco de contrair o vírus.
A jornalista Bruna Bronoski, de 32 anos, está entre as mulheres da parcela da população que trabalhou em casa durante a pandemia. Bruna conta que sempre trabalhou na TV desde 2013, mas foi demitida no início da pandemia, em 2020.
Após sua demissão, por aproximadamente seis meses, ela ficou extremamente deprimida e com incertezas sobre o mercado de trabalho. O primeiro ano da pandemia de Covid-19 (2020) provocou um recorde de demissões e fechamento de estabelecimentos comerciais no país, segundo a Pesquisa Anual de Comércio (PAC) 2020, divulgada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Mais de 400 mil empregos foram perdidos, e mais de 100 mil empresas encerraram suas atividades.
Após esses seis meses de incertezas, Bruna, que já pensava em mudar sua rotina de trabalho, se encontrou no freelancer.
“Profissionalmente estava muito difícil para mim, porque eu trabalhava com jornalismo de rua, contato com pessoas. De um dia para outro, não desempenhava mais essa função, me desiludiu muito, me colocou muito para baixo”.
O freelancer consiste no trabalho autônomo. Cada freelancer é atendido eventualmente e o profissional não mantém contrato fixo de trabalho com a empresa contratante. O freelancer, antes mesmo da pandemia de Covid-19, foi um dos popularizadores do home office. Para Bruna, começar a trabalhar com freelancer no home office foi como mudar “da água para o vinho”.
Mais de 60% dos brasileiros aderiram ao trabalho freelancer há menos de um ano. Durante a crise sanitária de Covid-19, o número de desocupados atingiu seu ápice e foram registradas mais de 15 milhões de pessoas nesta condição. Em 2020, mais de 1 milhão de pessoas se inscreveram na plataforma de mercado para trabalho freelancer e remoto. Os dados são do levantamento feito no final de 2021 pela Closeer, plataforma que oferece vagas para autônomos.
Cerca de 40% dos jornalistas do mundo estão como freelancer, segundo dado da Pesquisa da Federação Internacional de Jornalistas (FIJ) que entrevistou 1,3 mil profissionais de 77 países. O que não significa que essa forma de trabalho não apresenta problemas e críticas, como a má remuneração, em alguns casos. Além disso, essa forma de trabalho é consequência das demissões nos veículos de comunicação que fecharam na última década, visto a atual crise do jornalismo.
Porém, um dos principais motivos que fez Bruna, anteriormente acostumada com o jornalismo de rua, gostar de trabalhar em casa foi a flexibilização dos seus horários. Quando ainda trabalhava na TV, a jornalista precisava seguir uma escala de horários sempre com variações. Quando trabalhava de manhã, ela acordava às 5 horas, já que entrava no telejornal pelas 6 ou 7 horas. Deixava o trabalho entre 13 e 14 horas. No período da tarde, até as 19 horas, era o tempo para cuidar da casa e trabalhos da Universidade. À noite, ia para a Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG), onde cursava Letras Português-Francês, chegando em casa às 23 horas. Bruna morava sozinha e não contava com nenhuma ajuda para os afazeres domésticos. Ela também trabalhava durante os fins de semana, em um esquema de plantão e folga.
“Quando saí da TV e virei freela, estudar, trabalhar e cuidar da casa ficou muito mais fluído”. Agora, no home office, se Bruna precisar resolver algo, possui muita mais disponibilidade, pois é ela quem define os próprios horários.
“No freela tenho prazo para entregar as matérias para quem me contratou. Consigo ajeitar agenda para fazer as coisas no meio disso”. Antes ela trabalhava um período de 7 horas diárias na empresa, porém hoje ela trabalha durante os três períodos. “Se tenho algo para entregar sexta, acordo cedo, preciso almoçar, mas tô sempre voltando para o computador”.
Para a jornalista, outro ponto positivo do freela é a independência que ela tem ao exercer seu trabalho. Não precisa obedecer a uma chefia ou um horário. “Gosto de não ter chefia, ser mais livre nas redes sociais, não ter ambiente corporativo, precisar atingir metas. As metas que tenho é continuar no jornalismo”. A jornalista ressalta que atualmente gosta do home office porque trabalha em casa podendo sair de casa, diferente do que acontecia durante a pandemia de Covid-19. “Hoje eu gosto de trabalhar em casa. Sofri com home office no período pandêmico porque não via pessoas. Hoje não quero sair desse mundo”.
Mas a experiência com o home office não foi positiva para todas. Segundo pesquisa publicada pelo Hibou – empresa de monitoramento e análises de mercado –, a exaustão durante a pandemia da Covid-19 e isolamento social aumentou para 73% das brasileiras, que precisaram ficar em home office, tendo que se dividir entre trabalho, cuidados com a casa e filhas(os), para aquelas que as(os) têm ou cuidados com demais familiares.
Exemplo disso é a atriz Michella França, de 45 anos. Acostumada com os teatros lotados de públicos, precisou se adaptar às câmaras do celular e ao computador de casa para exercer sua profissão. Michella atua como atriz profissional desde 2001. Ela conta que sua experiência com o trabalho durante a pandemia foi “desesperadora”, não somente para ela, mas para os profissionais de teatro em geral.
“Foi bem desesperador, a gente precisa de público para poder trabalhar. No início, achávamos que não seria nada demais. Com o tempo, a gente viu a gravidade da situação. Aí foi um vazio enorme, porque a gente não via uma luz no final do túnel. Parecia que a gente nunca mais ia conseguir realizar um evento com várias pessoas no mesmo ambiente. É como se tudo o que tivesse vivido, nunca mais ia conseguir viver de novo”.
Michella relata que, na sua profissão, não tinha costume de gravar vídeos. Mas precisou aprender para que seu trabalho tivesse visibilidade durante a pandemia.
“Arriscamos: peças online, festival online, sem receber só pela visibilidade, festivais de vídeo. Eu não tinha costume de fazer vídeos assim. Era a única forma de ter visibilidade”.
Além da necessidade de entender a linguagem do vídeo, a atriz precisou se preocupar também com a qualidade desses vídeos e, consequentemente, pagar por equipamentos melhores.
“As experiências de teatro não foram boas. O teatro é diferente no vídeo, não é tão atrativo. Chegou um ponto que eu não estava aguentando mais assistir teatro em vídeo. A gente sente necessidade do público. A gente foi levando pela questão financeira. Não é a mesma coisa que o presencial”.
Como Michella exemplifica, o teatro precisou se adaptar à Covid-19. A principal alternativa encontrada pelos artistas foi a realização de lives e vídeos para as redes sociais, tentando alcançar o público através das telas. Com a pandemia, o calor das palmas presenciais do público foi substituído pela frieza dos computadores.
Mas ter de se adaptar ao ambiente digital não foi a maior dificuldade de Michella. Diferente de Bruna, a atriz Michella é mãe solo, de duas crianças, uma menina de 8 anos e um menino de 14 anos. O garoto possui transtorno do espectro autista. Como as crianças também passaram a ter aulas em casa, local de trabalho de Michella, ela precisou se desdobrar em uma tripla jornada – cuidados com a casa, filhos e a profissão.
“Com os dois em casa era complicado. As pessoas que me ajudam são idosos [os pais de Michella]. Não podiam vir aqui em casa. Eu fiquei sozinha com eles. Até para ir no mercado era muito complicado, não podia levar eles. Bem complicado. Principalmente em 2020. Foi o pior momento que a gente viveu”.
Com trabalho home office durante a pandemia, a rotina de Michella foi totalmente alterada. Ela acordava pela manhã, fazia as atividades escolares da TV Educativa com sua filha - às vezes pela manhã, às vezes pela tarde. Então elas almoçavam e brincavam. A filha de Michella odiou ter aulas online, já o filho gostou por querer ficar em casa. Por Michella precisar dedicar sua atenção à casa e filhos, ela só conseguia trabalhar mesmo quando eles dormiam, pelo período da madrugada. Michella só ia dormir por volta das 2h ou 3h da manhã.
Agora, com a volta do teatro para o palco presencial, Michella sente alívio por poder se apresentar diante do público, mas isso não significa que sua rotina esteja mais fácil. Ela continua tendo que dar conta dos cuidados com a casa, filhos e ainda trabalhar, tudo isso sozinha.
“É bem puxado, dependo dos meus pais também para ajudar. Meu menino não fica na escola o tempo todo. Fica duas horas só. Está passando por adaptações para ir aumentando o período. Preciso sempre de alguém para me ajudar, enquanto tô trabalhando nesses horários. Preciso de alguém para me dar esse suporte para poder conseguir estar trabalhando”.
Outra profissional que teve de trabalhar home office é a professora e pedagoga Adriana Souza Mara, de 47 anos. Para ela, o teletrabalho teve seus pontos positivos e negativos.
“Tudo tem lado positivo – saímos da zona de conforto, novos conhecimentos com a tecnologia. Ficar mais perto de quem a gente gosta mais, como a família. Começamos a valorizar pequenas coisas que não dava conta pelo ritmo acelerado”.
Alguns dos pontos positivos citados pela professora foi o maior contato e proximidade com a sua família e com a família dos seus alunos, que não precisavam ir presencialmente até os colégios. Ela também fala sobre ter maior tempo para cuidar da casa, que não existia com a correria do dia a dia. Outro ponto positivo foi os novos conhecimentos tecnológicos que ela adquiriu.
Já entre os pontos negativos, ela fala principalmente sobre a extrema cobrança e a falta de privacidade que o celular lhe trouxe. Visto que seu celular era seu principal objeto de trabalho. Era através do celular que Adriana conversava com a coordenação, filhos e pais.
“Primeiro ano foi o pior, a gente não saía e ficava sendo o dia todo cobrada, por aluno, professor, estado. E além de tudo tinha que ser mãe, esposa, filha. Essa cobrança a gente ficava ansioso. Só de escutar o barulho do celular a gente ficava ansioso sabendo que tinha uma mensagem com algo relacionado a escola” .
Adriana cita exemplos de momentos em que ela estava comendo e precisava atender o caso de um aluno urgente no celular. Entre os pontos negativos ela também ressalta o desgaste de não se ter uma rotina de horário, como no trabalho formal.
“Parte negativa é o desgaste. A gente, mesmo estando em casa, não tinha horário, não tinha limite. Era das 6 da manhã até 00h, o dia todo. No trabalho formal tem horário para trabalhar. No nosso telefone podemos bloquear pessoas, não precisa usar. Na pandemia usava sábado, domingo feriado, mercado.. Recebia áudio. Como era pandemia, as pessoas achavam que qualquer momento era momento de falar. Não só os alunos, tinham cobranças da secretaria, da direção, como eles eram cobrados mandavam pra gente. Reuniões infinitas, meets infinitos”.
“Ninguém tinha rotina certa... uma hora que estava mais tranquila, ia colocar a roupa pra lavar. Aí ficava escutando o meet e a máquina funcionando. Já me aconteceu de estar no meet e colocar o feijão para cozinhar, fazia comida a mais para sobrar e não perder tempo. Você está passando uma roupa e conversando com um aluno” .
O home office não foi negativo apenas para Andriana, mas também para seus filhos de 5 e 10 anos. “Minha filha, quando escutava música do ‘Vem Aprender’ já tinha angústia, pavor. Não queria ouvir. Ela ia super bem em matemática. A professora começou a ensinar divisão, ela se perdeu. Tinha nervo só de ouvir a música. Sensação ruim de aprisionamento”. Exemplo parecido com a filha de Michella.
Por ser professora, Adriana também percebeu a dificuldade e desânimo nos seus alunos diante do modelo de ensino remoto.
“Desgaste foi muito maior. A gente fez e parece que não teve um aprendizado efetivo. Acho que foi uns 15% de alunos que aprenderam... não prestavam atenção na aula. Não tinha aprendizado afetivo. Sequelas estamos vendo neste ano. A gente se sente impotente. A gente fez de tudo, planejou, não tinha nada pronto. A gente buscava, a gente ficava um tempo em frente ao computador pesquisando”.
Apenas em 2022, com o avanço da vacinação da população em geral, as escolas começaram a retornar suas atividades presencialmente. Durante a pandemia, mudanças nas formas de ensino provocaram dificuldade no aprendizado. Segundo dados da ONG Todos Pela Educação, o número de crianças de 6 e 7 anos analfabetas cresceu 66,3% de 2019 para 2021.
Mães como Michella e Adriana se desdobraram para tentar ajudar na educação dos filhos, que precisaram ficar em casa. Enquanto isso, essas mulheres continuavam trabalhando home office e também precisavam cuidar da casa.
Bruna, Michella e Adriana representam uma parcela dos profissionais que puderam aderir ao home office. Outras profissionais como Maria Cristina, Cida e Jessica, que trabalham na linha de frente da pandemia de Covid-19 precisaram continuar trabalhando presencialmente. Do total das oito mulheres entrevistadas, apenas três fizeram home office por determinado tempo da pandemia.
A exaustão também existiu para aquelas mulheres que não puderam aderir ao home office, com uma preocupação adicional: a de não contrair o vírus e transmitir para familiares próximos que necessitavam dos seus cuidados, sejam filhos, pais e/ou mães.
“Durante a pandemia todo mundo vai ficar em casa. Nós não. Tivemos que continuar e trabalhar muito mais ainda e também ter todos os cuidados para não levar o vírus para casa”, afirma a profissional da linha de frente da saúde.